quarta-feira, 28 de junho de 2023

"De exitio aspera" - Uma fábula do compadre Zé - (epílogo)

 

Três voltas deu o burro ao palratório e depois de zurrar três vezes, “Tres resonantes pedit in auras” (lançou para o ar três ressonantes peidos). Uma abelha enorme poisou-lhe na cabeça e iniciou uma dança que apenas os animais conheciam. E como na natureza não existem regimes, fácil se torna descodificar a comunicação: - Quando a terra era habitada pelos espetos, chamaram-me rainha. Nem a doçura que lhe ensinamos, quando por eles éramos escravizadas, lhes abriu as portas da natureza. Eu sou a Mãe de uma enorme família que faz parte de tantas famílias abraçadas pela natureza. Vamos voltar para as flores, encher o vento de pólen e os dias e as noites sem a prisão do tempo.

O lobo ergueu-se nas quatro patas, uivou e fechou a assembleia: - Voltemos para os nossos cantos. Às vezes uns ventos maus toldam-nos a ligação à terra.

Saltou do palratório e todos partiram.

Todos? Não, ficaram os porcos.

terça-feira, 27 de junho de 2023

"De exitio aspera" - Uma fábula do compadre Zé - (continuação)

 

Frente ao parlatório Rochoso o Burro baixou a cabeça, sacudiu com quatro pinotes os Chatos que teimavam em abrigar-se na macieza dos seus renhões e assim zurrou: “ -Já contavam os avós dos meus avós que há mais de mil invernos habitavam esta terra uns seres estranhos que para se afastarem da natureza caminhavam sobre as patas anteriores, feitos espetos. Organizaram-se em aldeias, depois em cidades, e quanto mais se organizavam, mais se separavam uns dos outros! A tal ponto chegaram que fizeram da semelhança distinção! Nunca se entenderam, nem mesmo quando diziam que tinham um cérebro maior que os outros animais. Serviu esse desenvolvimento para subjugarem o mais fraco, para inventar a morte pela guerra quando descobriram que o poder das armas podia dominar mais semelhantes. E nunca tão poucos dominaram tantos! Escravizaram e inventaram o PODER! Afastaram-se da natureza, a Nossa Mãe original e inventaram a religião. E esta só serviu para transformar aos humanoides nos seres mais abjetos do planeta! Ajudou a separá-los ainda mais em nome de “seres seráficos e bondosos” que mais não eram que excrementos filosóficos e teológicos de um cérebro involutivo a que chamaram civilização! Divididos em dominadores e dominados, fecharam-se e criaram fronteiras sentindo-se ainda mais diferentes entre si. Resolviam os seus problemas matando-se uns aos outros. À  banalização da morte justificada pela força, chamaram-lhe guerra. Inventaram o dinheiro e criaram então a pobreza!

 Poder e religião fizeram uma hipócrita aliança – outra forma de poucos dominarem a maioria. Levantou-se, então, a palavra liberdade e à maioria da população crismaram-na de povo. Monarquia, república, tirania, ditadura e finalmente democracia. Esqueceram-se que todos nascem livres na natureza que os cerca.

 A política tornou-se numa arte do engano. Quanto mais avançavam no tempo mais perto ficavam da extinção! Umas centenas de palhaços nascidos de sangue privilegiado, eleitos, representantes de divindades inventadas, de profetas, justificaram a escravidão, a destruição, a desigualdade… E surgiu a História para justificar a permanência! Ignoravam que na natureza a verdadeira história é a dos enterramentos ou, mais tardiamente dos cemitérios. Tinham uma relação esquizofrénica coma memória – pintaram, escreveram, filmaram, gravaram , guardaram em formatos digitais… E quanto mais investiam no conhecimento, mais se afastavam da realidade - chegaram ao ponto de substituírem o cérebro por um ecrã de computador ou telemóvel. 

O artificial substituiu o natural! Destruíram a maioria dos seres que habitavam a terra e o mar! Acabaram por conspurcar o meio ambiente em que viviam esquecendo-se que a natureza é mais forte! O sol passou a queimar mais, os rios secaram, as plantas recusaram-se a crescer, as tempestades tomaram conta de montes, vales, desertos, e derreteram os apoios do planeta. Naturalmente os humanos extinguiram-se!

(continua)

segunda-feira, 26 de junho de 2023

"De exitio aspera" - Uma fábula do compadre Zé

Farta de monarquia a fauna Lusa decidiu desencadear uma revolução. O velho Lobo, chefe da alcateia, reuniu-se com o verboso Corvo e a sábia Coruja. Enquanto a lua abria uma janela na escuridão os três discutiam, pensavam, uivavam, piavam, parlavam sobre a melhor forma de reunir todos os animais numa clareira da praia. Decidiram, então, enviar as Gralhas aos quatro cantos da Lusitana Terra convocando os representantes, sem distinção de género, de todas as espécies. Mas onde? E quando? Decidiram pelo rio Tejo nas fraldas de Lisboa pela centralidade e, no Inverno, pela coerência meteorológica das espécies.

Os primeiros a chegar foram os peixes. E a confusão começou! Os de água doce exigiam o plenário durante a maré baixa, os do mar na maré cheia! Para complicar as coisas um Golfinho tentou petiscar um Barbo! Surgiu, então, a primeira norma constitucional: “Sempre que se imponha a necessidade de uma assembleia geral de todas as espécies, ficam proibidos todos os atos de predação, violência, cio ou produção de venenos e toxinas”.

Aos poucos foram, então, chegando, os animais: As desconfiadas raposas esperavam numa vereda sobranceira enquanto os galináceos cacarejavam como se chegassem a uma festa. Entretanto os Coelhos esperavam que Ginetes, Furões, Doninhas, Texugos e Ratazanas, ocupassem o seu espaço na Assembleia. Já organizados em partidos chegaram os Suínos. Os Bísaros acenavam, pendurados nos rabos, a bandeira do Partido Sem Dono; Os Javalis, hasteavam nas presas o cartão do Partido  Sorrelfa e numa mistura de raças suínas , seguiam-se o Partido do Cagão  Português, da Bosta Especial, do Chiqueiro Democrático Suíno, da Importância Laroca, do Penico de Ação Nacional… e outras caganças partidárias que não perco tempo em nomear. 

          Uma brisa suave varria a assembleia já sentada, enquanto os Escaravelhos, Abutres e algumas aves esfomeadas mantinham a higiene do espaço. Subitamente ouviu-se o piar do Mocho e um silêncio aterrador calou os sussurros da Assembleia. Uma pedra enorme servia de parlatório. Altivamente o Pavão alargou os seus paramentos e abençoou a Assembleia: “Que todas as forças da natureza iluminem este consílio”. Deu quatro voltas, e caiu redondo no chão. Entre risos abafados o mestre Lobo subiu a enorme rocha. Sentou-se sobre os quartos traseiros e olhou em redondo, para toda a assembleia. E assim falou: - “Seres desta Lusa terra, habitantes do ar, do bosque, das cavernas profundas, da água, das rochas, das árvores, da charneca, das praias e dos leitos secos, dos lugares lúgubres, dos buracos e do fogo, das florestas esquecidas… Ouvi o Sábio Burro, o guardião do saber antigo.”

(Continua)